Tudo parecia caminhar conforme o planejado naquela tarde. Seria o momento de consolidação da proposta de renovação do Conselho Consultivo da Unidade de Conservação paraense. Entretanto, os contraditórios revelaram-se e quase desqualificaram o processo participativo construído ao longo de sete meses. Naquela ocasião crucial, a sabedoria do grupo foi posta à prova. Foi somente com o retorno do grupo ao seu eixo que o objetivo de renovação do Conselho pôde se concretizar.
A intenção primordial dos gestores ambientais era tornar o Conselho Consultivo efetivamente representativo e participativo, com a escolha de conselheiros que espelhassem as distintas ocupações e múltiplos usos que se fazem daquele pedaço de chão destinado à conservação. A missão seria apreciar o território à luz da Instrução Normativa ICMBIO nº 09, de 05/12/2014, para se configurar a renovação do Conselho. Seria necessário, então, analisar e estudar minuciosamente o território, cruzando as diferentes necessidades e interações entre os usuários e a área protegida. Num passo adiante, aconteceria a escolha pública dos conselheiros que legitimamente representassem sua categoria. Neste ponto que o inesperado aconteceu.
A primeira reunião ocorreu em março de 2016. Estavam presentes grande parte dos conselheiros, bem como os potenciais futuros representantes. Naquele momento, um fluxo lógico de pensamento foi criado para facilitar o trabalho do grupo. Primeiramente, os participantes receberam mapas do território e foram convidados a se localizarem nele e a trocarem experiências sobre como interagiam com aquele espaço (se moravam, se exploravam recursos, se trabalhavam ali). Em seguida, num mapa maior, consolidaram e unificaram os usos da região com a obtenção de uma visão panorâmica da ocupação do território pelos atores. Em diálogo com a memória, ainda pontuaram no mesmo pedaço de papel outros agentes potencialmente atuantes no local e que por ventura não estivessem ali presentes. Adiante, os mesmos atores foram agrupados em setores, que receberam nomenclaturas de acordo com as orientações da instrução normativa citada. Como último passo do encontro, cada setor brotado passou pelo filtro dos critérios elaborados a partir dos objetivos que dão vida à Unidade de Conservação.
O espaço no Conselho Consultivo foi garantido somente aos setores que de fato conferiam sentido e relação explícita com o território protegido. Por conta do chronos, o tempo do relógio, a consolidação final do processo de renovação postergou-se para a próxima reunião ordinária do Conselho em outubro do mesmo ano.
É de se imaginar que as conversas foram quentes. Divergentes interesses estavam em questão, disputas de poder se revelavam, a legitimidade da presença de cada ator envolvido no Conselho Consultivo foi avaliada. Cá entre nós, há de se convir que tais fóruns se configuram como um dos raros espaços oficiais de reivindicação de direitos sociais. Por mais que possamos criticar o modo como geralmente são conduzidos, por menos participativos e inclusivos que pareçam ser, ainda sim, são os poucos locais que existem para que população exerça seu direito de participação. Então, correr o risco de perder a vaga neste fórum poderia ser considerada derrota grande para os ativistas, as entidades de classe, os políticos locais.
Nos seis meses que se passaram desde aquela reunião, o time gestor da Unidade e seus facilitadores apoiadores conduziram oficinas com moradores do interior da área protegida. A intenção fora atender ao pedido de se “levar aquela bagunça” – como disse um comunitário participante da reunião de março – para as comunidades. Seria importante, na visão dele, esclarecer aos demais comunitários sobre o que se tratava a Unidade de Conservação e o Conselho Consultivo, bem como sensibilizá-los quanto à importância da participação no Conselho gestor.
Pedido atendido. As reuniões com as comunidades foram um episódio especial. O modo de escolha de representantes comunitários experimentado em formato diferente da tradicional votação colaborou no desenvolvimento de uma nova percepção sobre representação social. Os moradores eram convidados a indicar pessoas de suas comunidades com as quais sentissem confiança que elas seriam suas legítimas porta-vozes. Então, cada nome posicionava-se demonstrando estar ou não disposto a exercer a responsabilidade da representação de seu povo; se sentia-se confiante com a possibilidade de se tornar conselheiro(a) da Unidade de Conservação. Caso mais de um(a) indicado(a) topasse a empreitada, eles(as) buscavam o consenso entre si na escolha da pessoa que assumiria o papel.
Mas onde está o conflito nesta história?
Com a reunião de outubro, chegaria o momento de brindar a renovação do Conselho. Bastaria, apenas, alinhar a nomenclatura de alguns setores e escolher as instituições ocupantes das vagas dispostas em cada um deles. Isto, respeitando-se a paridade legal com a presença equilibrada entre as entidades públicas e da sociedade civil na ocupação das cadeiras do Conselho. Um exemplo feliz de conquista foi o alinhamento entre as comunidades. Já que estas mais que triplicaram sua presença no fórum com a soma de titulares e suplentes representantes.
Pois bem. A dinâmica de preenchimento das vagas convidava os grupos representantes de cada setor a reunirem-se separadamente e decidirem a composição – titularidade e suplência – de sua respectiva vaga. Neste momento, não se poderia perder de vista que titularidade e suplência seriam meras convenções. O inovador acordo firmado em plenária fixava que em caso de votação para futuras tomadas de decisão do Conselho, as cadeiras com vagas compartilhadas entre distintas instituições deveriam se posicionar por consenso sobre os temas. Caso contrário, se as instituições não chegarem em acordo plausível, a cadeira perderá o poder do seu voto. A intenção seria garantir uma mudança de modelo mental: do unilateral institucional, para o setorial, como indica a instrução normativa. Deste modo, é indiferente quem ocupa o espaço de titular ou de suplente em cada cadeira. Mais vale a presença e o diálogo. Pena que alguns participantes não compreenderam esse espírito colaborativo clamado pelo novo Conselho. De todo modo, aprendizados coletivos aconteceram com o comportamento das ONGs.
O fato é que existia uma cadeira para três instituições interessadas em participar do Conselho. Com a premissa de compartilhamento de vaga, uma delas deveria ceder o espaço e participar futuramente como ouvinte nos dois anos seguintes da vigência do Conselho. Porém, ao invés de manter o curso de conversa tranquila, bom-senso, inclusão e diálogo que vinha acontecendo, a negociação das vagas deste setor foi preenchida com reatividade, desrespeito, desequilíbrio emocional, gritaria, violência verbal, coerção, irracionalidade. Dois dos representantes – um mais do que o outro – deram bons exemplos de como não agir e não se comportar naquele fórum. Era impossível conter seus ânimos aflorados. Muitas estratégias foram aplicadas na tentativa de sensibilizar os protagonistas da lastimável cena: revisita aos critérios de seleção das instituições com espaço para apresentação de seus projetos e ações no território, pedido de escuta e respiro, escuta empática entre todos, declarações de tristeza dos demais participantes, filmagens com celular. Nada os ajudava a encontrar seu eixo para continuar na reunião com tranquilidade e coerência. Então, como ação extrema, os conflitantes foram convidados a se retirarem da sala.
Sem as forças opostas na sala, imediatamente o grupo retomou a clareza e o seu centro. Foi declarado que não se aceitaria aquele comportamento emocionalmente destrutivo no Conselho dali em diante. Com a vontade aberta para encontrar uma constelação que possibilitasse um ambiente de trocas e trabalho saudável no futuro, algumas propostas foram anunciadas. Até que uma delas gerou alívio coletivo instantâneo. A ideia era ocupar a cadeira destina às ONGs apenas com a instituição que contribuiu para a manutenção da qualidade do espaço dialógico criado entre todos, com coerência e respeito aos demais participantes. O som de consenso expandiu-se pela sala! Olhando ao redor, os semblantes desanuviaram, as posturas corporais ficaram mais relaxadas, sorrisos tomaram conta das faces atenciosas. A proposta acalentadora surgiu em algumas mentes concomitantemente, soubemos depois. Mas foi declarada por uma atenta participante que pouco se ouvia durante os dois dias de reunião.
O que podemos aprender sobre o poder da inteligência coletiva e do diálogo na transformação de conflitos com esse caso?
Parece que quando o grupo vivencia o espaço do diálogo, deixa de coadunar com atitudes extremistas que tentam desequilibrar o sistema e destruir a construção coletiva que faz sentido. O discurso composto por exageros em apelações emotivas, por confusões mentais e por voz dissonante em volume, perde a credibilidade entre os praticantes do diálogo. O campo dialógico convida à soluções que mantenham o bem-estar emocional e lógico do coletivo. A intenção de incluir os divergentes é mantida e sustentada até um determinado limite considerado prático ao grupo, isto é, não são toleradas atitudes individuais que contrariam a ética construída pelo grupo. As disputas de poder são reveladas e perdem espaço para as atitudes colaborativas. E certamente há outros aprendizados impossíveis de serem revelados ao olhar fresco.
Para saber mais:
*Diálogo – Comunicação e Redes de Convivência. David Bohn. Editora Palas Athena.
*Instrução Normativa ICMBIO nº 09, de 05/12/2014: https://goo.gl/aa3oBq
*Conselhos Gestores de Unidades de Conservação Federais – Um guia para gestores e conselheiros: https://goo.gl/WauhVD
Mari, seu relato vibrante mostra o efeito de sua forma de tratar as pessoas, se colocando a serviço da transformação. Parabéns pelo trabalho!
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Fantástico relato! Parabéns! Sonho em trazer estas vivências para a universidade!
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Bom texto.
O importante é ter diálogo com as partes interessadas, saber conduzir as reuniões, fato este bem difícil, pois temos que equilibrar as diferenças e interesses.
O diálogo construtivo e sempre bem vindo.
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